Pensar é transgredir.
Um texto espetacular que encontrei de uma escritora brasileira que não conhecia (os créditos estão no final do texto), aprendi à admirá-la,espero que gostem partilhem e comentem o que acharam ...abraços...
PENSAR
É TRANSGREDIR
por Lya Luft
Link da imagem e mais informações abaixo do texto...
Não
lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção
de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça
que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é
assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada.
Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver
o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se
esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Para
reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo. Apalpar, no nevoeiro
de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso
é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação
por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro
sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem
pensar!"
O
problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que
nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou
do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo
sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação. Sem
ter programado, a gente para pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário
confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha.
Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim
de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces,
aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é
transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos
demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um
lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o
primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que
fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é
claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta
é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal
nessa idade ainda é a vida. Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a
alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem
sabe finalmente respirar.
Compreender:
somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É
o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm
significado como fases de um processo. Se nos escondermos num canto escuro
abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores
do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar
menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da
perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si
não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso
pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver,
como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada
nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente
executada. Muitas vezes, ousada.
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